Seus olhos cintilaram na escuridão. Em passos decididos seguiu pela rua deserta da cidade. O corpo esbelto, bem vestido, cabelos negros e lisos bem aparados, o que faria naquela região, altas horas da noite, onde os próprios morados não se atreviam caminhar. Parecia não importar-se com os perigos que elencavam. Vez ou outra surpreendia um olhar fugaz por uma ou outra janela entreaberta, um cão enfurecido que avançava contra o portão, um gato alheio a tudo atravessando a rua.
Na rua apenas os postes de iluminação com sua luz amarelada, incentivando a escuridão. Realmente que não encontrava viva alma por ali. Aproximou-se da porta de um azul claro descascado que dava para a rua. Bateu levemente, como quem é aguardado. Três batidas e a porta se abriu. Um homem negro, corcovado, as cãs apontando sua idade avançada, recepcionou-o.
- Já está atrasado...advertiu o ancião, sem os cumprimentos usuais e demonstrando já conhecê-lo.
- Atrasei-me, realmente, desculpe-me...mas, de nada adianta justificar-me, ponderou o jovem de maneira submissa e respeitosa.
- Os outros já estão no barracão, vamos para lá...determinou adentrando o fundo da casa.
A casa era bastante simples, com poucos móveis, antigos e desgastados pelo tempo, o suficiente para um homem modesto e solitário viver. O barracão realmente respeitava esse nome. Era apenas isso. Um lugar muito amplo, de chão de terra, rústico, com cabeças de lobo empalhadas e símbolos místicos dependurados em abundância. Ao fundo um altar de pedra com velas de sebo acesas, tendo ao centro a imagem de um ser meio lobo e meio homem.
No barracão onze homens de diferentes idades me aguardavam. Naquela noite haveria a presença do Lobo Rei e o jovem seria iniciado. Todos tinham mantos negros e o rapaz foi convidado a vestir um branco. No chão estava riscado um grande pentagrama. Os onze membros do clã posicionaram-se ao redor, o rapaz no centro, cabendo ao ancião a grande invocação. Palavras cabalísticas foram proferidas, fumegadas por fumaças de incenso, que nublaram todo ambiente.
Cada membro sorveu um cálice que continha um líquido amargo e consistente. Uma ladainha monótona, exaustiva e hipnótica começou a ser pronunciada por todos, em uma entonação persistente, levando o jovem a um estado de transe. Ruídos estranhos passaram a ser ouvidos, como se algo imenso rondasse o barracão, arranhando as paredes de madeira. Uivos, gemidos, urros, uma sucessão de sons assustadores.
O velho pareceu entrar em estado de convulsão, jogando-se no chão, contorcendo-se, desfazendo-se rapidamente de suas roupas. Seu corpo passou a sofrer uma mutação, aparentemente dolorosa, onde aos poucos foi tomando uma forma canina, agressiva e imbatível.
Todos ajoelharam-se tocando a cabeça no solo, enquanto o jovem continuou em pé no meio do círculo. O lobo o rodeou, rosnando e mostrando os poderosos dentes. Em movimento ágil saltou sobre o rapaz mordendo-lhe o pescoço. Nada mais viu, despertando no quarto do homem que o recepcionara. Sentia-se bem, leve, disposto. Seu tabu seria manter o segredo do clã, que lhe fora revelado no ritual do Lobo Rei. Caso desobedecesse seria morto.
Os encontros no barracão aconteciam na lua cheia, onde os membros se transformavam em homens lobos. Nessas ocasiões levavam pessoas para serem devoradas. Havia um ciclo onde cada membro deveria se responsabilizar por conduzir ao local um certo número de pessoas.
Obedecendo a esta ordem, Tolmai, o rapaz iniciado deveria fazer sua oferta. Precisaria arrumar uma desculpa muito convincente para levar alguém até lá. Assim refletiu por dias. Vários convites frustrados. Pensou em colegas da faculdade, em mendigos, em pessoas que detestava. Viu-se num trevo. Não encontrando saída, decidiu procurar o ancião. Explicou-lhe a dificuldade e pediu que o ajudasse dessa vez. O velho sorriu enigmático e colocando as mãos no ombro do mancebo disse que a oferta seria dada.
Suas noites, por alguma razão, passaram a ser atribuladas. Via os lobos devorando-o. Com a insistência dos pesadelos e estando com os nervos à flor da pele decidiu procurar mais uma vez o homem. Caminhou pelas ruas e vielas até chegar mais uma vez à casa. Encontrou a porta semi-aberta. Entrou inseguro e em silêncio, com receio de ser advertido. Na cozinha o velho falava com alguém e determinava que uma moça de nome Quíone fosse trazida ao barracão. Tolmai gelou. Quíone não era um nome comum. Era o nome de sua namorada. Saiu pé ante pé para não ser percebido. Seu coração palpitava celeremente. Estava perturbado e confuso.
Tolmai dirigiu-se ao emprego de sua namorada. Na recepção informaram que ela havia saído mais cedo alegando não estar passando bem. Correu para a casa dela e não estava. A mãe não soube explicar, acreditando que ela estivesse trabalhando. As horas corriam mais do que nunca. O jovem visitou hospitais e farmácias sem obter qualquer notícia. Já estariam com ela ? Esse pensamento fez com que se desesperasse ainda mais. Culpava-se. Ela poderia ser morta naquela noite por causa de suas ambições. Ele teria tudo o que quisesse pelo Lobo Rei, mas em troco disso deveria sacrificar sua namorada.
Já entardecia quando Quíone chegou em casa. Tolmai estava ali sentado aguardando-a. Disse que precisaria revelar-lhe um segredo. Estava disposto a contar-lhe tudo para protegê-la. Na calçada viu três membros do clã olhando-os. Colocou Quíone no carro, sob protestos da moça. Dirigiu sem rumo. Por um lapso adentrou uma rua que dava para o bosque. No caminho dizia estarem em perigo, que os lobos iriam aparecer, que ela seria sacrificada. Quíone acreditou que o namorado estava perturbado, com algum problema e que devia levá-la de volta para casa.
O pneu do carro estourou ao passar por um buraco no asfalto. Apavorado, Tolmai desceu do carro e avistou dois membros mergulhados na mata. Arrancou a garota do carro e pediu que ela corresse. Os gritos, xingamentos e resistência de Quíone cessaram quando avistou atrás deles um lobo de enormes proporções.
Passando por entre a mata fechada, arranhando-se, escorregando em lamaçais, os dois adentravam cada vez mais, perigosamente, a mata. O lobo estava muito próximo, assustada escorregou rolando por um despenhadeiro, enquanto Tolmai foi acuado entre árvores de troncos muito grossos.
Quíone, um pouco tonta, ergueu-se, cambaleante, atravessou a mata e chegou a estrada paralela onde conseguiu rapidamente carona de uma caminhonete que passava. O motorista afirmou que havia lobos na floresta e que sempre os via em sua fazenda, mas nunca haviam atacado pessoas.
No coração da floresta o corpo de Tolmai jazia inerte.
Nenhum comentário:
Postar um comentário