Isso aconteceu há muito tempo, antes dos brancos ancorarem suas caravelas nas praias brasileiras. Um tempo em que os dias eram marcados pelo nascer e por do sol, pela sucessão de luas, pelos frutos do caju revelando um ano a mais para cada um que ali vivesse. Um tempo de paz e onde a guerra surgia para proteção de seus territórios, mas isso era raro. Tempo em que abundavam a caça, a pesca e os frutos e raízes colhidos da mata e a os deuses falavam diretamente com os homens.
Era já madrugada e a lua reinava como um círculo brilhante. O velho feiticeiro disse ter visto uma uruguaçu, negra e reluzente, andando ao redor da aldeia. Por essa razão, iniciou seus cânticos enquanto pitava seu grande cachimbo, intentando falar com os espíritos. Taraguá estava em trabalho de parto. Sua gravidez tinha sido misteriosa. Um dia entrou na mata, em noite proibida, quando voltou deu apenas alguns passos e desmaiou. Assim ficou um mês deitada na rede, alimentada com as ervas que Aimberê lhe preparava. Todos acreditavam que não sobreviveria, havia quebrado um preceito, poderia até ser expulsa, mas o feiticeiro a acolheu. Ele falou com a ambuá e ela disse para proteger a moça. Somente ele sabia o que havia acontecido.
O parto foi difícil. Taraguá não resistiu, mas o menino nasceu forte. O feiticeiro o abençoou e o entregou para Aisó. Ela cuidaria dele como se fosse seu próprio filho. O menino crescia amparado pelo olhar atento de Aimberê. O velho ensinava seus segredos, mostrava como ler o tempo e os sinais dos espíritos e dos deuses. Prometeu a toda aldeia que no dia em ele fosse furar a orelha tudo seria revelado. O menino já havia se tornado adolescente, cumpriria os rituais de passagem para se tornar um homem. Naquela noite a jiquitaia falou com o velho, dando a ele as orientações das provas pelas quais o rapaz deveria passar. Aimberê chorou. Não acreditava que conseguiria. Deveria, no entanto, obedecer.
Enquanto os outros adolescentes da aldeia se preparavam para enfrentar o marimbondo, o feiticeiro chamou Tapiaguaçú para junto de si. O momento era esperado e todos estavam ansiosos, quase entrando na boca do pajé. Ele parecia mergulhar no tempo e conversar com os antepassados. Seu olhar distante aos poucos fixou-se no rapaz que ele se apoiava no ombro.
- Na noite em que não se sai e todos devem permanecer em suas ocas, Taraguá desobedeceu, entrou na mata escura, onde a luz da lua pouco iluminava. Nessa noite havia um buraco onde se podia entrar no mundo dos deuses e os deuses caminharem livres por nossa aldeia. Não se pode olhar os deuses sem que coisas ruins aconteçam. Mas Akuanduba viu Taraguá, admirou seus seios, seu corpo e sua beleza. Apaixonou-se. Por isso ele se transformou em homem e apareceu diante dela. Fizeram amor aos pés da becuiva. Lá a semente foi plantada. Foi lá que Tapiaguaçú começou a crescer. Ele é filho de uma mulher de nossa aldeia e de um deus, por isso já nasceu um feiticeiro. Por isso as provas para se tornar um homem são maiores, mais difíceis.
A aldeia estava muda como uma abói enfiada no solo. O vento também escondeu-se. Tudo estava parado. O pajé continuou.
- Como prova, Tapiaguaçú deve trazer para a aldeia um quartzo branco do palácio de Yebá Bëló...disse o velho em tom solene. Levará arco, flecha e zarabatana., mas os perigos que enfrentará de pouco servirá estas armas. Deverá usar inteligência e sagacidade. Deve retornar dentro de quatro luas ou não mais poderá fazer parte daqui, vagando para sempre pela floresta.
O rapaz tremia, tentando disfarçar e mostrar sua virilidade. O pajé baforou várias vezes nas armas, fazendo encantamentos que o ajudariam a vencer a prova.
Tapiaguaçú correu para o meio da floresta. Naquela noite ajeitou-se entre folhas de coqueiro, buscando proteger-se do frio. A noite ia alta quando ouviu ruídos, um caminhar cuidadoso nas folhas secas. Escondido entre as folhas viu um grupo de mulheres, as guerreiras da mata, ferozes e traiçoeiras. Seu coração disparou, parecia querer saltar pela boca a qualquer momento. Procurou evitar qualquer som que pudesse chamar a atenção. Mantinha-se oculto, se não fosse um guaxinim identificá-lo e promover um escândalo no local. As mulheres se aproximam. O rapaz foi capturado.
Na aldeia das guerreiras, uma grande fogueira está acesa. Tapiaguaçú, tendo suas mãos e pés amarrados, torna-se objeto de admiração coletiva. Logo uma anciã, de longos cabelos, arcada pelo tempo, e de passos muito lentos, quase carregada por duas mulheres, se aproxima. Ela fala em língua que ele não entende.
Uma garota lhe trás um pote de barro com brasa viva e um punhado de ervas secas. A anciã, que todos chamam de Maiara, se aproxima e corta um tufo de cabelo do rapaz, mistura-o com as ervas e lança nas brasas gerando uma fumaça grossa e mal cheirosa. Ela passa várias vezes um punhado de ossos por ela, pronunciando palavras estranhas, e depois lança os ossos no chão. Lendo a caída dos ossos, ela se surpreende e lança novamente. Como que magnetizados os ossos recaem nos mesmos lugares. Olha atenta e abalada. Mais um lançamento e a resposta se repete. Ela cochicha com a mulher que parece ser a líder guerreira.
- Caraíba ....a mulher grita. Num eco todos repetem.
Como que a um sinal duas moças se aproximam oferecendo-lhe uma bebida alcoólica e alimentos. Na manhã seguinte é levado a uma nascente onde é banhado e recebe colares de contas e cores diversas. Uma espécie de sucos de ervas age como um sabão espumante, limpando a pele e perfumando-a. Após recebe pinturas complexas por todo o corpo. O rapaz teme que seja um ritual de morte.
Retornando o séquito a aldeia se depara com a anciã no meio do terreno, lá ela lança pós e entoa seus cânticos. Tapiaguaçú é, então, conduzido para uma oca onde está a líder guerreira. Percebe que é um ritual amoroso, um ritual de fertilidade e sua tarefa é garantir que a mulher tenha um filho ou melhor, uma filha. A aldeia, composta apenas por mulheres, eventualmente rapta homens para acasalamento. No caso específico, a velha deve ter descoberto que é filho de um deus e gerará uma menina. Mostrando-se solícito procura atender aos ritos das guerreiras. Antes do amanhecer foge para a mata, aproveitando-se da distração das mulheres.
Caminha longamente pela floresta. Tendo fome encontra mel de jataí. Recosta-se a uma árvore buscando descansar, quando sente seus ombros acariciados. Levanta-se num salto. Vê-se diante de Jarina, a deusa árvore. Ela lhe orienta a apanhar cera de abelhas, pois irá precisar em breve.
Assustado, penetra na penumbra da mata, desaparecendo. Deve agora atravessar o grande rio. Com cipós e bambus começa a construir uma jangada. Deve atravessá-lo antes que anoiteça. É lua cheia e não se pode aproximar das águas nestas noites.
Observado pelos jacarés, Tapiaguaçú inicia sua travessia, quando percebe que mal amarrados os bambus começam a se soltar e serem levados pelas águas. Para se proteger se agarra em algumas pedras e uma árvore seca no meio do rio. Enquanto pensa alternativas para sair dali a noite chega. O pajé muito havia lhe contado as histórias da Mãe D´Água, das Yaras, de Cotaluna, Asima Si e outras deusas que habitavam as águas. Eram sedutoras e mortais. Viu uma rabanada na água. Outra e mais outra. Algo nadava circulando onde estava.
- Tapiaguaçú ! Tapiaguaçú ! Tapiaguaçú !...uma voz doce e meiga o chamava.
No meio do rio, emerge uma mulher belíssima, caminhando sobre as águas em sua direção. Parecia cintilar aos raios do luar. Seus hormônios masculinos entraram em ebulição. Lembrou-se da cera de abelha e dos avisos da deusa árvore. Tapou os ouvidos, ensurdecendo-se aos chamados daquela encantadora mulher.
Mesmo assim parecia hipnotizado. Sua razão dizia que se a seguisse morreria, seria levado para o fundo do rio. Mas algo o atraía para ela, irresistivelmente. Levantou-se pronto para atender ao chamado, quando sentiu que alguém o agarrou pela cintura, puxando-o violentamente. Era Iná, a deusa do golfinho, que o conduzia para a outra margem. Cavalgou no animal, segurando a cintura da deusa, atônito e desperto do encantamento.
Naquele momento, acocorado nas margens do rio orou para Acy, a mãe da lua, e por todas as deusas que estavam o acompanhando e intervindo para que não sucumbisse.
Ali adormeceu, sem reparar que uma sucuri passava ao seu lado.
Sentiu-se perdido sem saber para onde ir. Tomou rumo ao interior da mata, por instinto. Já não sabia onde estava. Entendeu que não teria como retornar a aldeia. Apoiou as mãos no rosto e chorou. Subitamente ouviu o ruído da onça, recompondo-se, atento. Encolheu-se atrás de uma grande paineira. Olhou várias vezes por de trás da árvore e o animal havia desaparecido. Seu alívio teve pouca duração. Sentiu o fungar da onça em suas costas. Virou-se abruptamente, dando de cara com ela.
A onça o olhou transformando-se em uma mulher bela e atraente. Reconheceu ser Topétine. Ela lhe deu uma poção que o encolheria, de maneira que pudesse entrar no buraco da formiga, passagem para o mundo subterrâneo.
Pequenino, Tapiaguaçú entrou no formigueiro. O cheiro da poção que esfregara no corpo mantinha os insetos afastados. Caminhou pelas cavernas do submundo. Uma das entradas parecia muito iluminada, escorregou cautelosamente pelos corredores. Um grande salão se abriu diante de seus olhos. Algumas estalagmites e estalactites brilhavam como diamantes lapidados, que iluminados pelas tochas das paredes, emitiam fachos multicoloridos. Sem dúvida, alguém residia ali.
Estupefato, andou pelo lugar, a passos leves. Contudo, não demorou para que uma mulher com o corpo metade serpente se apresentasse. Era Boiúna. Ela o olhou com olhos vítreos, fixos, nada amistosos. Uma luta desenfreada se desencadeou. Flechas e zarabatana eram inúteis. O jovem recebeu profundo corte no peito. Aproveitou-se das lascas dos diamantes, altamente cortantes, para preparar a ponta das flechas. Após várias tentativas, uma flecha atingiu o coração daquele ser misterioso, derrubando-o. Sem refletir afundou-se no interior da gruta. Corredores escuros e escorregadios, rios subterrâneos, lodo. Nesse ambiente inóspito, Tapiaguaçú escorregou sendo levado pelas águas. A correnteza forte e persistente o impedia de agarrar-se a qualquer coisa para se salvar.
A mão de Mara o resgatou, arrancando-o das águas e levando-o a lugar seguro. Mara, a mulher da magia, a única deusa capaz de alterar o rumo das coisas. Mara lhe deu um manto feito das escamas do piau e que deveria usar quando estivesse em grande perigo. Também entregou uma pasta venenosa, informando que saberia quando usar. A deusa desapareceu na escuridão da gruta.
Seguiu o jovem, como se andasse pela noite sem lua. Foi do alto que avistou o reluzente palácio de Yebá Bëló, todo feito de quartzo e reunindo tesouros incalculáveis. O lugar emergia das águas, porém não boiava, estava suspenso. Nadou até próximo do belíssimo castelo, guardado por homens peixe, outros com aparência de salamandras, serpentes e centopéias. Com as raízes do aguapé trançou uma corda que o elevou até uma das entradas, aparentemente menos vigiada. Molhado, temia escorregar no chão cristalino. Fugidio, adentrou corredores e visitou salas. Na sala do trono, viu a fascinante deusa, conversando enquanto tecia uma rede de fios iridescentes.
Continuou vasculhando os espaços em busca de um cristal que pudesse carregar consigo. Em uma sala pilhas deles se amontoavam. Estava prestes a pegar um quando surgiu diante de si o temível teiniaguá, o lagarto protetor dos tesouros. Apanhou rapidamente um cristal, enquanto o monstro se aproximava. Poderia ser morto. Mais uma vez constatou que nada o feria. Nem mesmo as flechas com as pontas diamantinas.
Besuntou a zarabatana com a pasta que recebera de Mara e mirou na língua do animal, enquanto se mostrava com sua força ameaçadora. O lagarto caiu paralisado. Aproveitando-se correu buscando a saída. Sua agitação despertou os guardiães que passaram a segui-lo até encurralá-lo. Envolveu-se na capa de escamas e transformou-se em um piau mergulhando nas águas. Distante, Yebá Bëló sorri satisfeira acompanhando toda cena em seu espelho d´água. Ele mergulhou seguindo o fluxo das águas. Quando os raios de luz de Coaracy incidiram sobre as águas, ele boiou no rio.
Respirou profundamente sentindo novamente o ar da floresta. O ambiente era conhecido. Uma breve caminhada e estaria na aldeia. Adentrou-a aclamado por todos. O velho Aimberê o abraçou e recebeu o belo cristal, para o qual Tapiaguaçú fora desafiado. Era noite de festa. Tapiaguaçú agora era um homem.
- Hoje era o último dia para seu retorno e você cumpriu sua prova. Que Akuanduba o faça feliz e saudável !
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