Diva estava preocupada e seus olhos marejaram de lágrimas ao ser chamada na escola para receber o boletim de seu filho. A separação do marido, a mudança de cidade retornando ao aconchego da mãe, obrigaram-na a transferir o filho de escola. Todos os traumas naturais de um rompimento certamente afetaram Leandro, sempre muito apegado ao pai. Situação ainda mais agravada com todas as mudanças resultantes. Deixara a cidade que já conhecia, a escola e seus amigos. Recomeçar uma vida não seria fácil, principalmente para um adolescente. Leandro estava na segunda série do Ensino Médio, sempre fora um bom aluno, não um aluno que se destacasse, se sobressaísse, mas mantinha boas notas, agora havia decaído drasticamente.
O coordenador a orientou a procurar um professor particular considerando a grande defasagem. A escola era de um nível de qualidade inquestionável, exigente e oferecia um bom suporte pedagógico, mas Leandro precisaria de um pouco mais. Trêmula e pensativa dirigiu-se a seu camaro vermelho, refletindo no apoio ao filho. Já pensara em levá-lo a um psicólogo, pois as constantes discussões que presenciara e depois a descoberta de que o pai tinha outra mulher e um bebê foram intensamente doloridas para ele.
Buscou algumas amigas informando-se sobre um professor que pudesse ministrar aulas particulares a Leandro. Foram vários dias conversando, pesquisando, até que sentada no salão de sua cabeleireira teve uma indicação.
- Conheço um moço que é professor de Matemática, ele mudou-se à pouco tempo perto lá de casa...parece ser uma boa pessoa, comentou Sônia enquanto penteava sua cliente.
Saindo do salão e com o endereço em mãos, decidiu conhecer o rapaz, dependendo da impressão e disponibilidade poderia contratá-lo. A casa ficava um tanto afastada, mas o bairro em que residia era um bom bairro. Logo avistou uma casa imersa em trepadeiras e cactos.
- 286...esse é o número, resmungou consigo mesma checando o número da casa.
Procurou uma campainha, mas não encontrou. Bateu palmas várias vezes e já estava desistindo quando um vulto apareceu através da porta de vidro. Estava de camiseta pólo, bermuda e sandálias. Tinha os cabelos lidos e castanhos claros, pele lisa e bem cuidada, uma pessoa de boa aparência. Diva explicou que precisava de um reforço ao filho, que ele fora indicado e aproveitou para especular sobre sua origem formação, emprego e o que mais poderia extrair do moço. Chamava-se Francesco.
O rapaz convidou-a a entrar, o que aceitou rapidamente pois desejava conhecer o interior da casa, onde provavelmente seu filho estaria. Na sala havia três poltronas verde musgo, um tapete similar ao persa, uma cristaleira onde se viam várias peças claramente antigas. Uma mesinha ao canto com algumas esculturas de corpos disformes e uma cortina que pegava a parede toda com gravuras de árvores. Anexa a ela havia um quarto que ele transformara em escritório com estantes abarrotadas de livros, uma escrivaninha, uma poltrona cor de vinho aveludada, alguns vasos bem grandes num canto. A cozinha simples com o essencial para alguém que morava sozinho viver. Não apresentou o quarto. Questionado disse não ter esposa ou namorada. Diva aprovou a pessoa e o ambiente. Fizeram os agendamentos.
Três dias após o carro de Diva estacionou mais uma vez diante da casa de Francesco. Essa rotina iria se ampliar gradativamente ao longo dos meses. Leandro entrou timidamente na casa do rapaz, que procurou descontrair, mas o adolescente parecia aéreo, distante, meditativo, como se o tirassem da tomada de tempos em tempos. O professor percebeu que precisaria desenvolver sua atenção, sua concentração e interesse para que seus encontros pudessem atingir os efeitos desejados.
Aos poucos o bloqueio de Leandro foi sendo quebrado, passou a sorrir mais, brincar, ficar mais à vontade, a ponto de fazer confidências, desabafar. Francesco era uma pessoa que exalava confiança, alguém que parecia ter incríveis dons de ouvir e aconselhar. Leandro apegou-se. Mesmo sem as aulas marcadas, ia com sua bicicleta até a casa e lá ficava papeando até ser dispensado pelo moço. Tornaram-se amigos.
O número de aulas também foram aumentadas passando a duas vezes por semana. Leandro já demonstrava melhoras no aprendizado e resultados mais animadores na escola. Ainda se mantinha esquivo, solitário, evitando o convívio de colegas e arredio aos professores, mas as notas emergiam com solidez. Diante da aprovação da situação do menino pelos professores, Diva sentiu-se mais fortalecida e entendeu que permaneceria com as aulas apenas por mais algum tempo.
Aos poucos Francesco foi apresentando a Leandro sua vasta biblioteca, livros curiosos, em especial alguns que retratavam vampiros. Francesco, inclusive, empolgou-se a ponto de adquirir uma televisão para juntos assistirem filmes com essa temática. A curiosidade do rapaz se intensificava. Em casa sonhava com esse mundo mágico, imortal. Em algumas noites chegara a sonhar que era um poderoso ser sobrenatural que invadia a casa de seu pai e bebia todo sangue da criança que roubara seu lugar. Também imaginava-se dilacerando a atual esposa de seu pai. Na verdade, isso era o que mais queria.
Em certo momento questionou Francesco sobre isso, se seria possível tornar-se um vampiro. Francesco sorriu, espreguiçando-se no sofá, mas mudou de assunto, para decepção de Leandro.
Passados meses e vendo o bom rendimento do filho, Diva chamou Leandro para dizer que suspenderia as aulas particulares. A reação foi violenta e explosiva. Disse que não poderia deixar de ter as aulas, eram importantes para ele.
Nas próximas avaliações, Leandro tirou péssimas notas, reforçando a idéia de que dependia das aulas para ser bem sucedido.
Comentando o assunto com Sônia e suas preocupações com o filho, casualmente, quase congelou-se ao saber que o filho freqüentava a casa de Francesco.
- Vejo sempre ele lá, às vezes quando saio aqui do salão e chego em casa já tarde, vejo ele saindo de bicicleta...às vezes até de sábado e domingo. Não quero por minhoca na cabeça da senhora, mas o mundo de hoje tá perdido, a gente ouve tanto falar em drogas, pedofilia...o Francesco parece boa gente, mas nunca se sabe... – envenenou Sônia a conversa.
Para certificar-se passou a seguir o garoto. Não foi difícil constatar que Sônia estava certa com relação às idas de Leandro a casa de Francesco. Esperou que fosse embora para bater na casa e procurar uma conversa com o professor. Visivelmente irritada e agressiva não poupou palavras e ameaças, informando que seu filho não teria mais aulas particulares com ele. Francesco tentou, inutilmente, explicar o que acontecia ali. Eram conversas, filmes, pipoca, nada que pudesse influenciar negativamente o garoto.
Diva chegou em casa descontrolada, revelou que o estava seguindo e que cancelara a partir daquele momento as aulas com Francesco e que ele não se atrevesse ir mal nas escola. A discussão foi feroz. Leandro trancou-se no quarto e lá, sozinho, chorou. Com os olhos nublados e debruçado na cama, acreditou ter visto Francesco a seu lado. Adormeceu com sua mãe espancando a porta. Hora de ir para a escola.
Na saída da escola viu seu amigo entre as árvores. Correu até ele antes que sua mãe chegasse. Francesco garantiu que as coisas mudariam.
Naquela mesma noite, Diva assombrou-se com os piados de uma coruja em seu telhado. Supersticiosa temeu algum mau agouro. Apegou-se ao terço, embora sem rezá-lo. Pé ante pé foi até o quarto de Leandro e viu que ele dormia tranquilamente. Fechou a porta e saiu, lançando-se em sua cama esgotada.
Da penumbra, Francesco aproximou-se de Leandro fitando-o demoradamente. Aproximou-se absorvendo o aroma que exalava, chegando-se cada vez mais até o pescoço frágil do garoto. Sua língua quase tocou a artéria pulsante.
Leandro mexeu-se. Entreabriu os olhos e virou-se de lado, mergulhando novamente em sono profundo.
Francesco seguiu pela rua quase deserta, na madrugada fria e úmida. Em uma esquina um garoto, talvez de uns treze anos, abordou-o pedindo uns trocados. Aproveitando-se de um terreno baldio, agarrou-se ao menino sofregamente, nutrindo-se do sangue que tanto ansiava. Mas era Leandro que ele desejava. Era Leandro que ele teria.
Após mais um encontro furtivo na saída da escola, decidiram que iriam se ver no Bosque Municipal. Um lugar afastado, tranqüilo e que permitiria que conversassem sem serem importunados.
No bosque mais uma vez Leandro abordou o assunto de vampiros e seu desejo de tornar-se um. Francesco, cauteloso, expôs que sabia como fazer isso. Leandro ficou exultante.
- Você é um vampiro ?, perguntou empolgado e cheio de motivação.
- Sou um vampiro, mas as coisas não são como você imagina...explicou-lhe Francesco, olhando-o profundamente nos olhos. É um mundo de maravilhas e de renúncias, de amor e isolamento, de viver e estar morto, tudo ao mesmo tempo...não é apenas vingar-se daqueles que tiraram seu trono...é preciso cuidado e responsabilidades...
- Sei que você pode me ensinar a ser um vampiro...o que eu preciso fazer ?...faço qualquer coisa...me mostra como é...insistia Leandro agarrando-se ao braço de seu misterioso amigo.
Francesco resistia para entregar-se ao impulso de saborear seu sangue, queria mais, queria Leandro junto de si, que atravessassem os séculos juntos.
Leandro recostou-se a uma árvore mostrando seu pescoço de pele alva e pediu que fosse feito. Francesco aproximou-se encostando-se no rapaz, podia sentir o cheiro e sua boca já podia degustar o sangue morno.
- Você já foi vingado...revelou.
Leandro olhou-o assustado.
- Nesta noite a mulher e a criança foram mortos, degolados...seu pai está preso – contou-lhe friamente.
O rapaz estava boquiaberto. A vingança por um instante parecia agora oscilar entre o ódio e a piedade.
- Se quiser ser um vampiro deve saber o que quer, saber que nosso caminho é ao lado da morte...não era o que você buscava ? A morte deles ? – insistiu Francesco.
Leandro olhou-o de maneira enigmática, puxando a gola da camiseta para baixo, cedendo espaço para que Francesco se fartasse.
Francesco beijou-lhe o pescoço suavemente, antes que seus dentes penetrassem a carne e o sangue escorresse para uma nova vida.
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